Lisete

Natália Sgalla
3 min readJan 14, 2023

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Lisete era única. Nasceu em uma família tradicional de São Paulo, mas ela, de tradicional, não tinha nada. Quando pequena, estudou em um colégio de freiras. Todos os dias era chamada na diretoria. Ou havia levantado o hábito de uma ou havia mostrado a língua no meio da aula de português para outra.

Em casa, era um terror. Seus pais não tinham sossego. Paredes pintadas de tinta azul quando chegavam do trabalho, toalhas de mesa sujas com o molho do macarrão - ela gostava de virar o prato de ponta cabeça para ver a comida fazendo “ploft” - e rolos de papel higiênico jogados pelos quatro cantos da casa.

Durante a adolescência foi ainda mais longe. Namorava com um depois de outro. Ficou conhecida no bairro por isso. Para cada vizinho que comentava algo quando ela saía de casa com saia curta, um belo dedo do meio era sua resposta pronta.

Um pouco mais velha, casou-se. Seu marido era seu oposto. Tranquilo, sereno e um ótimo jogador de xadrez. Depois de um tempo engravidou e decidiu chamar sua filha de Lisete. Gostou tanto do nome que também começou a se chamar assim também, qual era o problema?

Foi uma boa mãe. Ensinou a sua filha a não levar desaforo para casa. Ensinou também que cada um é dono do próprio nariz e faz o que quer da própria vida. Ensinou que estamos pouquíssimo tempo neste lugar chamado Terra e que este tempo não deveria ser desperdiçado. Por isso dizia tudo que vinha em mente. Não tinha filtro.

Certo dia estava na casa de uma amiga quando o filho adolescente desta se envolveu em uma briga. Pegou um taco de sinuca da sala de jogos do prédio e bateu com tanta força na mesa que o rompeu. Quando os ânimos estavam se acalmando, ela disse a ele com um tom manso: “meu querido… eu sei que você ficou nervoso. Sei que nesses momentos dá vontade de enfiar o taco no cú dos outros, mas não podemos…”. O que era um momento de tensão se transformou em palhaçada.

Outra vez, foi acompanhar a amiga no cabeleireiro. Levantou-se para pegar um docinho, mas voltou de mãos vazias. A amiga perguntou “Ué, você não pegou?” ao que ela respondeu em alto e bom som: “Não, chamaram todas as formigas antes para comer”.

Essa amiga de Lisete também tinha outra filha que naquele período estava namorando um rapaz de sua escola. Certo dia, chegou com uma sacola de plástico repleta de camisinhas e proferiu: “Fui à farmácia e a atendente achou que o pinto do meu marido ainda funciona, mas deixo para vocês aproveitarem…”.

Lisete estava ficando mais velha e com isso começaram as visitas aos médicos com mais frequência. Fazia exames de glicemia, colesterol e todo o resto que precisava ser analisado. Repetia sempre que não tinha medo da morte, mas que era melhor não dar chances para que ela viesse mais cedo. Em uma visita ao seu endócrino, ele leu o resultado dos exames e falou: “Dona Lisete, você está ótima", ao que ela respondeu: “É que você ainda não me viu pelada!”.

Conviver com Lisete era dar aquela sacudida na monotonia. Era rir de si mesmo ainda que os tempos estivessem difíceis. Era lembrar que a vida precisa ser divertida, para que valesse mais a pena de ser vivida. Lisete sempre soube como ser feliz, porque sempre soube ser ela mesma, não importava o que estivesse passando ao seu redor.

Hoje, vive nos Estados Unidos. Sua filha mudou-se para lá e a levou junto. Passa seus dias fazendo caminhadas ao ar livre, assistindo documentários sobre gatos - sua eterna paixão - e dando sábios conselhos a sua querida neta, que para sua felicidade saiu igualzinha a ela, destemida e perspicaz. Sua amiga a telefona de tempos em tempos para falarem da vida e Lisete, que agora usa um aparelhinho para surdez, sempre termina a chamada gritando: “Me liga mais vezes, porra!”.

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Natália Sgalla

Escrevo para entender a mim e o mundo. Escrevo para te inspirar a fazer o mesmo. Blog: nabancadanaban.com