Matilde

Natália Sgalla
3 min readAug 30, 2022

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Imagem da Nossa Senhora, cruz na parede. Terço na mesa de cabeceira e a foto de Santo Expedito em cima do armarinho da cozinha. Sua casa era seu reflexo. Sempre tão devota, sempre tão agradecida, mas ai ai, depois de velha Matilde deu para falar umas coisas, sabe como é…

No meio do café da tarde, disse: “Se for viajar pelo Brasil, vai mais para o sul, onde tem gente branca.”

Criou tão bem, com tanto amor. Filhos e netos receberam todos os cuidados. As filhas e netas também, claro, mas com elas o pulso devia ser mais firme, afinal sabemos que as mulheres podem dar muito trabalho. E Matilde não queria suas fêmeas perdidas, sabe como é…

No jantar de aniversário, disse: “Aquela sem-vergonha da Clarissa… Casou-se estando grávida, vê se pode.”

Seguia as leis de Deus. A lei dos homens, para ser mais exata. Ficou chocada quando viu em um filme que passava de tarde na TV dois homens se beijando.

No almoço de domingo, disse: “E o filho da vizinha que passou de mãos dadas com um marmanjo aí… Onde já se viu!”

Agora Matilde anda precisando daqueles cuidados. As pernas não seguram o peso, as mãos não penteiam mais os cabelos. Sempre fez de tudo para os outros, mas não gosta que façam por ela porque sempre fazem errado! Agora, porém, não tinha outra escolha.

De manhã, esbravejou com a empregada: “Não, não! Aquela bacia é para as roupas brancas! Não, não! Tem de ser de outra marca! Não, não! Aquela panela não é boa!“

Depois de infinitas trocas,ela chegou.

Alta, robusta, unhas curtas, mas pintadas de um rosa bem clarinho. Maquiagem feita por quem sabe se maquiar. Vestia-se bem, mas de forma confortável — sabia o que esperar do trabalho.

Chegou e já foi avisada que precisava cozinhar algo rápido porque Matilde estava com fome. Assim o fez. “Foi o melhor macarrão que eu já comi!” gritava Matilde, ainda no seu quarto.

A casa estava sempre um brinco. A roupa sempre lavada e passada. Sua nova acompanhante fazia tudo certo, era um milagre! Além disso, escutava tudo que Matilde queria dizer. Como nos seus tempos de juventude, quando conheceu seu marido nos bailinhos feitos na casa de seus primos.

Com o passar do tempo, a condição de Matilde foi piorando. Cada vez mais paralisada, cada vez mais debilitada. A mente ainda funcionava e certo dia, confessou: “Sabe, eu tenho um dinheiro guardado… Em meu testamento você vai estar”.

Já era quase a hora do almoço e algo não ia bem. Matilde não comeu o quanto deveria comer e não falava coisa com coisa. Correram para o hospital, mas a notícia não era boa. Seus órgãos não estavam mais funcionando e sua passagem era só uma questão de tempo.

Em seus últimos momentos, pediu para falar com sua acompanhante. Disse que a amava como uma filha. Disse que não havia conhecido uma pessoa tão boa em sua vida. Agradeceu aos céus por ela ter entrado em sua vida. Suspirou e se foi.

Abriu-se o inventário. Um apartamento para cada um dos filhos. As chácaras em nome das filhas. Uma casa para o neto. E o dinheiro para Ricardo Chaves dos Santos — ela ainda não havia conseguido mudar seu registro. E a pobre da Matilde nunca percebeu.

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Natália Sgalla

Escrevo para entender a mim e o mundo. Escrevo para te inspirar a fazer o mesmo. Blog: nabancadanaban.com