O Que Queremos para Nossas Crianças

Natália Sgalla
4 min readDec 27, 2022

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Manhã no escritório. Um advogado contava entusiasmado algumas histórias sobre seu filho, que estava começando a dizer suas primeiras palavrinhas. Em certo ponto ele diz, todo orgulhoso, que estava ensinando sua cria a falar: “esse é meu caralhão” — ou “caraião”, como ele pronunciou. Com direito à mímica da segurada no seu órgão genital.

Num primeiro segundo eu sorri. Segundo mesmo porque demorou tudo isso pra eu me tocar e pensar comigo: se eu tivesse uma filha e saísse por aí ensinando a dizer “essa é minha vaginona”, acho que ninguém ia aprovar. Depois, um outro pensamento: por que ensinar um menino de um ano e pouco a fazer isso mesmo? E a vida seguiu.

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Farmácia perto do trabalho. Vejo um menino de uns cinco/seis anos brincar com alguns esmaltes. Pegou um deles, bem vermelho, e ficou olhando para o frasquinho quando, rapidamente, um homem que pensei ser seu pai segurou sua mão e disse: “já falei que não é pra brincar com isso… essas coisas de menina”. Jogou o esmalte na bancada onde estavam vários espalhados e foi pro caixa pagar suas compras segurando o pulso de seu filho.

Lembrei de quando eu era criança e gostava de fazer tudo que era “de menino”. Sempre amei esportes (preferia Futsal), chegando toda suada na sala de aula depois da Ed. Física; jogava video game quase toda tarde — saudades do Nintendo 64, gostava dos brinquedos dos meninos porque eram sempre mais divertidos (o postinho com o lava-rápido que saia água ao invés da boneca que não fazia porra nenhuma). Agradeci por meus pais não terem ligado tanto para essas coisas quando eu estava crescendo e a vida seguiu.

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Querido e eternamente atrasado Terminal Bandeira. Sentei-me no assento do meio da última fileira e após alguns pontos uma família entrou. Dois meninos, gêmeos idênticos de também uns seis anos, sentaram-se nos bancos perto de mim enquanto os pais decidiram pela fileira da frente.

Um dos meninos comentava alegremente sobre uma peça de teatro que haviam assistido. Ouvi a palavra “teatro” e abri um sorriso. Ele contava empolgado sobre a história, o cenário, a música e em determinado momento, disse: “Nossa..aí, uma hora né, ficou tudo escuro né.. e aí até um outro menino me abraçou!”.

Imediatamente, a mãe vira todo seu corpo para trás e pergunta, com um tom perturbado, para não dizer de reprovação: “Como assim um menino te abraçou???”.

Ao responder, o filho disse exatamente: “Ah, é que como ficou escuro ele se assustou e veio pra mim”. É simples de entender, não? De cara fechada, sua mãe retruca: “Da próxima vez você responde ‘sai pra lá, jão.. o que você tá pensando?’”. E repetiu frases parecidas até que o menino entendesse o que era para responder numa situação “deste tipo”.

Lembrei dos meus cinco melhores amigos. São todos gays. E todos, sem exceção, me disseram que quando criança começaram a perceber que sofriam bullying, mas por muito tempo realmente não entendiam o motivo.

Imagine você sofrer, no período que eu sempre escuto dizerem ser o mais feliz da vida — a infância, sem ao menos saber o por quê. Imagine o que isso faz com a sua autoestima, seus sentimentos, sua personalidade. Imagine que quando adultos essa violência se torna ainda maior. Imaginei tudo isso no ônibus, o sorriso deu lugar às lágrimas e a vida…bom, ela seguiu.

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Meses depois, já na Itália, final de tarde de domingo. Subo no quarto andar com meus sogros para jantar com um casal de vizinhos e sua filha de quatro anos, Valentina. Eu, que antes não tinha muito aquele “jeito com criança”, hoje sou a tia que brinca, se joga no chão, canta mesmo que desafinado, faz dancinhas engraçadas e por aí vai.

Fazia calor e eu estava com um vestido larguinho e uma rasteirinha. Após jantarmos pizzas e supplis (um dia farei um texto somente sobre essa iguaria), sento-me no chão com Valentina para continuarmos brincando. Uns dez segundos depois ela solta do nada: “E essa sandália de indiano aí, hein?”, com um tom meio irônico, meio de deboche.

Sorri calmamente e respondi: “Não entendi o que você falou”.“Meu pai falou que sandália assim parece sandália de indiano” ela disse, ajeitando sua tiara vermelha. Continuei sorrindo: “Ah ué, essa sandália comprei lá no Brasil, mas pra mim não tem problema parecer com sandália de indiano. São parecidas mesmo, né?”.

Ela me olhou por uns segundos e disse, subindo um pouco os ombros: “é, acho que são”. E seguimos brincando com as bonecas e seus cabelos cortados de modo nada simétrico. E a vida continuou seguindo, mas neste dia eu decidi escrever este texto.

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Há uma citação de Maria Montessori que diz: “As crianças são investidas de poderes desconhecidos, que podem ser a chave de um futuro melhor”. Penso, no entanto, que os adultos estão há tempos atravancando a fechadura.

Crianças não nascem preconceituosas. Não nascem sexistas. Não nascem racistas. Mas crescem num mundo assim e então seguem o exemplo. É realmente simples de entender.

Mas não, não é simples de entender.

Pergunte a trinta pessoas se elas se consideram boas pessoas, justas, de caráter ilibado ou qualquer coisa nesse sentido e tenho certeza que todas dirão que sim. Pergunte se são preconceituosas, sexistas ou racistas e tenho certeza que todas te dirão que não. Tá cheio de pesquisa no Brasil que mostra isso. No mundo. Nós não nos enxergamos como somos. Ou melhor, não admitimos o que somos. E por que isso?

Porque é muito menos doloroso construir um escudo de ódio e arrogância do que reconhecer nossos traumas, erros e falhas para começar a trabalhar nisso. É mais fácil omitir-se perante situações difíceis do que “agir onde não foi chamado”. É definitivamente mais tranquilo permanecer na ignorância do que enxergar o quanto temos que batalhar, no dia a dia, para construirmos uma sociedade melhor.

Mas com as crianças, ah… é tudo mais fácil. Se você dá carinho, você recebe carinho. Se você dá atenção, você recebe atenção. Se você escuta, com certeza será ouvido. É infalível. E é extremamente gratificante, pois é amor puro. Que eduquemos nossas crianças, agentes do nosso futuro que tanto queremos bem, com esse tipo de amor.

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Natália Sgalla

Escrevo para entender a mim e o mundo. Escrevo para te inspirar a fazer o mesmo. Blog: nabancadanaban.com