Íris

Natália Sgalla
5 min readJan 4, 2023

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Íris começou a trabalhar em um restaurante brasileiro em Roma no mês de maio de 2021. Já era garçonete em outro lugar e quando a proprietária que estava almoçando lá viu que ela era brasileira e parecia ser muito extrovertida, simpática com os clientes, decidiu chamá-la para trabalhar no seu. Ficaria encarregada do bar, mas ajudaria a tirar pedidos e servir as mesas quando estivesse livre.

Primeiro dia e tudo pareceu correr bem. Íris era uma pessoa alegre e logo quando chegou se entrosou com os colegas de trabalho. Falava alto e tanto, mas tanto, mas tanto, que seus colegas de trabalho tinham de pedir para que ela parasse um pouco, pois deviam se concentrar para colocar os pedidos no sistema ou atender a ligação para reserva de uma mesa.

Não passou muito tempo para que todos percebessem que Íris tinha um vício. Todos os dias comprava o que em Roma é quase uma tradição: a bendita raspadinha. Não, não aquela de beber, aquela que você raspa com uma moeda e ganha dinheiro se tiver sorte. Íris raspava com esperança, mas nunca chegou a ganhar mais que 20, que gastava comprando outras raspadinhas.

Falava muito de dinheiro. Quanto havia ganhado com o restaurante que tinha no Brasil, quanto estava ganhando com o seu outro trabalho, fazendo decorações e enfeites para festas de crianças, cestas de café da manhã e outros itens e o quanto economizava no aluguel por haver ocupado um apartamento com sua família.

Passado um tempo, as coisas começaram a ficar diferentes. Íris chegava cada vez mais atrasada, fazia inúmeras pausas para fumar seu cigarro e não ajudava os colegas quando estes precisavam e ela tinha tempo livre. Se cometia um erro, botava a culpa em outro. Se tomava uma bronca do gerente, começa a cantar com a voz altíssima enquanto limpava o balcão, só para irritá-lo mais.

Somente uma coisa não mudava: Íris tinha uma mania de falar em alto e bom som, quase gritar um “Obrigada Deus!” assim, do nada. Não parecia ser uma pessoa religiosa, mas quase todo dia os outros funcionários ouviam a exclamação proclamada em algum momento do turno.

Certa noite, a proprietária pagou parte dos salários dos funcionários em dinheiro. Uma funcionária pegou seus 600 euros e guardou em sua bolsa que estava na dispensa. Poucos minutos depois viu que Íris foi para lá e quando retornou, falou ao fechar a porta seu “Obrigada Deus”.

Ao chegar em casa, a funcionária contou e recontou o dinheiro, mas era fato: faltavam 100 euros. Não sabia se havia contado errado da primeira vez, mas tinha quase certeza que não, cuidadosa que era. Disse à proprietária o que havia ocorrido, mas nada havia que se fazer.

Poucos dias depois, ouviu Íris dizendo seu “obrigada Deus” novamente quando estava saindo da área do bar para ir fumar. Havia chegado o momento de dividir a gorjeta, mas quando a funcionária pegou o cofrinho em forma de coração e o virou para fazer cair as notas e moedas, a surpresa: faltavam 50 euros.

Dali a uns dias, outra situação estranha: o gerente estava fazendo o fechamento do caixa e em certo momento saiu para ir ao banheiro. Jurou por tudo que era mais sagrado que já havia terminado de contar o dinheiro, faltando somente abater os pagamentos em cartão. Porém, quando retornou, percebeu que faltavam 75 euros do lugar onde havia colocado as notas. Mais uma vez, um “obrigada Deus” foi ouvido minutos antes.

Era certo que todos haviam suas desconfianças, mas como acusar alguém sem provas? Além disso, no restaurante não havia câmeras, ou seja, somente pegando a pessoa em flagrante seria possível resolver o problema.

Até que um dia, Íris chegou estranha ao restaurante. Estava calada, o que não era o normal para ela. Parecia estar pensando em algo sério e a todo momento olhava seu celular. Bebeu quase uma garrafa inteira de gin que estava no bar enquanto trabalhava e, como era de se esperar, passou mal durante toda a noite.

Chegou no restaurante no dia seguinte com uma cara péssima. “Aconteceu alguma coisa?” todos a perguntavam, mas ela dizia que não, com os olhos vermelhos e inchados como se tivesse chorado por muito tempo.

Os clientes começaram a chegar e tudo corria normalmente, como se fosse outra noite qualquer. Era uma sexta-feira e então, já às oito da noite, todas as mesas estavam ocupadas. Em certo momento, o motoboy das entregas chegou e como sempre fazia deixou o dinheiro que recebeu com o gerente para que ele colocasse no caixa. Este assim o fez e logo então saiu para receber um casal que chegava para jantar.

Passados poucos minutos, o gerente voltou para o caixa, pois viu que uma família havia se levantado da mesa para pagar. Quando abriu, uma surpresa: o dinheiro que o motoboy havia dado não estava mais lá. Ele procurou nos bolsos, procurou no chão, procurou debaixo do balcão, mas não encontrou.

Íris estava perto, mas não falava nada. O gerente chegou a perguntar se ela tinha visto esse dinheiro em algum lugar, mas ela respondeu que não. Continuou secando os copos e do nada proferiu o seu “obrigada Deus” do dia. Virou-se para colocar um copo na prateleira e foi então que o gerente viu notas enroladas caindo do seu bolso de trás.

“Íris, o que é esse dinheiro aí atrás?”, perguntou ele. Íris pareceu tomar um pequeno susto, mas muito astutamente disse que era dela, ué. O gerente então pediu para ver as notas. Ela tirou do bolso uma de 20 e três de 10. Exatamente a quantia que o motoboy havia deixado. Mas Íris não havia se atentado a um detalhe: todas as notas tinham estrelas desenhadas no canto direito.

Foi então que o gerente perguntou: “Você quer falar algo para se defender?”. Íris desabou. Começou a chorar copiosamente, dizendo: “Por favor, você não sabe o que eu estou passando. Eu tenho que fugir do meu marido. Eu tenho que comprar uma passagem para o Brasil. Ele controla tudo. Não me deixa sair de casa, pega todo o meu dinheiro, futrica no meu celular… e se eu faço alguma coisa errada ele vem pra cima. Ele tem amigos policiais então eu tenho medo de fazer alguma coisa… Por favor, não me demita, eu já consegui juntar um pouco escondido, falta pouco para eu sair desse inferno, por favor, eu não fiz por mal”.

Era a confissão que todos estavam aguardando, mas que ninguém esperava. O que era raiva se transformou em empatia. Todos agora pensavam em uma forma de ajudá-la. Dali a poucos dias, a surpresa: os funcionários haviam feito uma vaquinha para pagar a passagem de Íris. Ela ficou sem reação. Caiu de joelhos e rios de lágrimas escorriam de seus olhos. Beijou a testa de cada um e então foi para casa correndo arrumar suas malas, antes que seu marido chegasse do trabalho.

Pegou o avião no dia seguinte, sem olhar para trás. Houve turbulências, mas nada abalava o que Íris estava sentindo. Desceu, encontrou sua amiga que foi lhe buscar no aeroporto e de lá foram diretamente ao Cristo Redentor. Subiu as escadas com a sua mala pesada, mas não se importava. Ao chegar lá em cima, ajoelhou-se e falou novamente: “Obrigada Deus”. Agora, Íris estava livre para ser o que bem quisesse.

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Natália Sgalla

Escrevo para entender a mim e o mundo. Escrevo para te inspirar a fazer o mesmo. Blog: nabancadanaban.com